domingo, 5 de fevereiro de 2012

Análise: Os Homens que Não Amavam as Mulheres

Sempre ao assistir um filme que é uma adaptação de um livro que eu já li, um dos meus passatempos quase automáticos é analisar como o roteiro irá solucionar o problema de condensar as toneladas de informação da fonte original para cerca de duas horas de projeção. As naturezas diferentes de cinema e literatura pedem que algumas concessões sejam feitas no diálogo entre as duas formas de arte, o que costuma ferir os sentimentos e expectativas de fãs de uma determinada obra quando ela é transposta para às grandes telas. Em especial, eu tinha algumas preocupações de como esse problema seria solucionado com um dos livros de mistério mais densos, cheio de detalhes e recheado de idas e vindas dos últimos tempos como Os Homens que Não Amavam as Mulheres. A preocupação era à toa. O filme de David Fincher é uma das melhores adaptações recentes de um livro para o cinema - não, eu não vi o original sueco, então não farei comparações -, talvez a melhor desde O Senhor dos Anéis. Toda a natureza complexa do livro é representada fielmente, o que também produz um filme de atmosfera pesada e momentos chocantes, que trazem angústia até mesmo para quem já sabe o que vai acontecer.

Daniel Craig interpreta Mikael Blomkvist, um jornalista sueco que trabalha na revista independente Millennium e que está enfrentando a pior crise de sua vida. O tribunal sueco o condenou por difamação ao poderoso empresário corrupto Hans-Erick Wennerström, a quem Mikael denunciou sem saber que estava caindo numa cilada. Enquanto vê sua carreira ir por água abaixo, ele recebe uma proposta inesperada do milionário Henrik Vanger (Christopher Plummer), um homem já envelhecido e que mora em uma isolada ilha com alguns membros de sua família: investigar o desaparecimento de sua sobrinha Harriet, ocorrido quase quarenta anos antes e que Henrik acredita fortemente se tratar de um caso de assassinato, sob o disfarce de estar escrevendo a biografia do velho empresário. Henrik suspeita de toda a sua família, que, de fato, é formada pelo pior grupo de pessoas que se pode imaginar. Não faltam suspeitos: seu sobrinho Martin (Stellan Skarsgard), irmão de Harriet; sua sobrinha Cecilia (Geraldine James), prima de Harriet; a irmã de Cecilia, Anita (Joely Richardson); até mesmo o delegado da família, Dirch Frode (Steven Berkoff). Relutante a princípio, Mikael não vê como recusar o emprego quando Henrik oferece podres do passado de seu desafeto Wennerström como recompensa.

Porém o caminho de Mikael logo se cruza com o de Lisbeth Salander (Rooney Mara, um achado de Fincher), uma jovem hacker com problemas de socialização e que passou a vida toda sob a tutela do Estado. Lisbeth experimentou todo tipo de violência contra si, o que apenas contribuiu para seu isolamento social, mas que não impediu que ela desenvolvesse seu talento para investigações e aguçasse ainda mais sua mente analítica. Mikael e Lisbeth começam a desencavar segredos do passado da família Vanger e percebem que o que parecia ser um desaparecimento na verdade é uma das engrenagens de uma história brutal e complexa.

Verdade seja dita: por mais que a história criada por Stieg Larsson seja fascinante e o roteiro de Steven Zaillian faça jus a ela, Os Homens que Não Amavam as Mulheres é Lisbeth Salander. A personagem é uma das criações mais marcantes dos últimos tempos e, ainda que sua moral e suas atitudes possam ser questionadas, é impossível não simpatizar com ela e torcer por seu destino. Rooney Mara rouba todas as cenas em sua interpretação e ganhou uma indicação justíssima ao Oscar. A hiper-coadjuvante de A Rede Social se revelou uma das maiores apostas da nova geração. O elenco todo, aliás, está afinado, mas é Mara quem toma o filme para si. Fincher, por sua vez, talvez faça a direção mais experimental de sua carreira, o que já fica claro no começo com a abertura do filme, uma abertura mesmo, com efeitos totalmente digitais enquanto os créditos rolam. Isso já foi relativamente comum no passado, mas saiu de moda há muitos anos - a nova ordem é mostrar o menor número de créditos possíveis no começo do filme; se possível, nenhum. A abertura do filme, porém, é pontual para dar o tom do que virá depois e o resultado é de bastante classe, em especial pela trilha sonora de Led Zeppelin escolhida para o momento. Outro ponto notável são as pequenas referências e brincadeiras no decorrer do longa: um personagem usa uma camisa com o logo do Nine Inch Nails (banda de uns dos autores da trilha sonora, Trent Reznor); em outro momento, o clímax brutal do filme recebe como trilha Orinoco Flow, de Enya (!). Pequenos detalhes que conseguem quebrar a tensão do filme - e acredite, que tensão.

Se seria impossível retratar com fidelidade absoluta todos os acontecimentos do livro, o filme faz um excelente trabalho. Zaillian faz um roteiro conciso e de fácil absorção para quem não leu o livro, embora a pessoa talvez tenha um pouco de dificuldade para acompanhar alguns detalhes, que no fim não estragam em nada a trama como um todo. Nos momentos em que a história precisa correr mais, entra o trabalho brilhante dos montadores Angus Wall e Kirk Baxter, vencedores do Oscar ano passado por A Rede Social e que mereciam muito uma dobradinha. Quem também repete um trabalho perfeito é Trent Reznor e Atticus Ross, que entregam uma trilha arrepiante e que casa perfeitamente com a atmosfera do que se vê na tela. Os fãs tem todos os motivos para respeitar o trabalho feito por Fincher aqui. Quem não conhece a obra original deve ir avisado de antemão: o filme é pesado, muito pesado mesmo, com temas fortes de misoginia e violência sexual, culminando com uma cena de estupro. Se isso não for um empecilho para você, não deixe de conferir. Os Homens que Não Amavam as Mulheres é um thriller moderno de primeira classe.

Nota: 5,0 de 5,0.

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